sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Contos & Crônicas: Manhã Fugaz

O barulho insistente do alarme do celular já o chamava há mais de dez minutos, mas ele ainda não acordara. Chegou tarde de sua ronda na noite anterior. Agora, na verdade, deveria estar de folga, mas como precisava de dinheiro para pagar a pensão de seus dois filhos, cobria o plantão dos colegas para ganhar um extra. Aquela vadia tinha conseguido arrancar uma grana preta dele nos tribunais. E ele duvidava muito que o dinheiro fosse todo para as crianças...

O celular tocou mais alto. Dessa vez o sono foi vencido. Ainda de olhos fechados, tateou a cama de solteiro em busca do aparelho. Encontrou-o. Apertou o botão “ligar” e aguardou impaciente enquanto a tela de “boas-vindas” iluminava fraca, mas irritantemente seu quarto Se é que se podia chamar aquilo de quarto... Na verdade era praticamente toda a sua casa. Desde que se divorciou, deixou seu apartamento de dois quartos e 70m² com a ex e mudou-se para aquele cubículo no centro da cidade. Era um pequeno aposento de um prédio velho e decadente.

Seus móveis consistiam em sua cama, um microondas, um gaveteiro – onde guardava pratos e talheres - suas duas malas ainda com as roupas, ambas guardadas em baixo da cama, e só. Não cabia mais nada. Seu atual “lar” era do tamanho do quarto de empregada de seu antigo apartamento, incluindo o minúsculo e ridículo lavabo que chamava de “banheiro”.

Tinha se mudado para lá porque era mais perto do trabalho, assim economizava o dinheiro da passagem – sim, a vadia também ficara com o carro – e o aluguel era barato. Se bem que R$ 300 às vezes era caro demais para uma espelunca de 20m². O lugar era tão pequeno que ele podia fazer quase tudo sentado na cama. Na verdade, “poder” não era a expressão correta. “Era obrigado” se encaixa muito melhor. Para abrir o gaveteiro, por exemplo, ele tinha que subir na cama, caso contrário não havia espaço.

Depois do que pareceu uma eternidade a tela de saudações deu lugar ao papel de parede do celular. Abriu os olhos apenas o suficiente para conferir as horas: 5h17. Estava atrasado. Precisaria correr ou tomaria outra dura do sargento.

Soltou o aparelho e se espreguiçou. Sentou-se. Usava apenas uma cueca branca, já meio puída, com alguns furos. Aos 32 anos estava em boa forma. Não porque se preocupava com a saúde ou com atividades físicas. Muito pelo contrário. Afinal, dois maços de cigarros por dia e almoçar hambúrgueres com refrigerante constantemente não poderiam ser considerados hábitos saudáveis. Sem falar nas "cervejinhas" com os amigos. Podia até faltar dinheiro para a pensão dos meninos, mas o da cerveja, nunca! Sua sorte (ou seria azar?) era que ainda atuava em campo, nas ruas, o que exigia a prática de exercícios forçados: longas caminhadas pelos bairros das rondas, frequentemente somadas às corridas atrás de um batedor de carteiras.

Ainda sonolento, levantou e coçou o traseiro. Seguiu para o banheiro. Depois de usar o vaso sanitário, livrou-se da cueca e abriu o chuveiro. Percebeu então que tinha esquecido a toalha. Retornou até seu quarto-sala-cozinha-armário e encontrou-a ligeiramente suja e muito úmida, embolada em um canto. Fingiu não se importar. Aliás, fingir era o que mais fazia no último ano desde que a mulher dele - melhor, ex-mulher - o tinha pego com outra e o colocado para fora de casa. Depois de dois meses na justiça, ela ganhou a guarda dos seus dois filhos - ambos meninos. um de seis e outro de onze - o carro, o apartamento e uma pensão que lhe consumia quase 80% de seu orçamento mensal. Se a vida já era difícil antes com seu salário de cabo da PM, agora que tinha que sustentar duas casas, era um verdadeiro pesadelo.

Com a toalha na mão, voltou ao banheiro. A cortina do box, de um plástico já bem gasto e enegrecido de lodo, teimava em grudar no seu corpo. Tentando afastá-la acabou se irritando e puxou-a com tal violência que a frágil estrutura foi ao chão. Foda-se. Entrou em baixo do fraco jato de água. O aquecimento a gás era velho e os banhos quase sempre variavam entre "morno-frio" e "frio suportável". Claro, se fosse verão. No inverno só havia uma temperatura: "frio congelante".

Tomou banho. A única coisa que ainda lhe dava prazer. O real prazer, não o momentâneo e ilusório do cigarro e da cerveja que seu corpo havia se acostumado. Deixou a água escorrer pela sua nuca e descer por todo o corpo. Era relaxante, mas como estava atrasado não poderia demorar. Em menos de 10 minutos já havia terminado.

Secou-se um pouco com a toalha úmida e enrolou-a na cintura. Dirigiu-se à pia. passou a mão no rosto e constatou que precisava fazer a barba. Pegou o sabonete e formou uma espuma grossa. Espalhou-a sobre os pelos da face. Na hora de usar o barbeador, acabou se cortando. Merda. Enxugou o rosto e tentou estancar o sangue com um pedacinho de papel higiênico. Súbito, lembrou-se que era dia 06. Dia de entregar mais da metade do salário à vadia da sua ex-mulher sob o pretexto de "pensão alimentícia". Como se ela precisasse disso... Toda a cidade sabia que a vaca estava dando para um velho ricaço desde que se separam e que o homem bancava tudo, até a escola dos meninos. Bom, pelo menos eles teriam uma boa educação e mais chances que ele no futuro.

Escovou os dentes. O despertador lembrava-o mais uma vez de que estava atrasado. Ótimo. Agora o esporro matinal do sargento estava garantido. Resolveu acelerar. Na pressa, escorregou no lodo da cortina caída ao chão. Deslizou pela curtíssima distância até o quarto. Perdeu o equilíbrio e bateu a cabeça na beirada de madeira da cama. Foi ao chão.

Sangue. Muito sangue. Percebeu a visão embaçar. É agora. Vou morrer. Decepcionou-se muito ao descobrir que, ao contrário do que diziam os filmes e as novelas, não assistia sua vida toda passar diante de seus olhos.

Seu corpo adormecia. Sentia frio. Não demoraria muito agora. Tentou pensar em algo feliz em seus momentos finais e lembrou-se dos filhos que quase nunca queriam sair com ele e, quando iam, reclamavam a todo o minuto. Não. Definitivamente esta não era uma lembrança boa para se ter antes da morte. Tentou então lembrar de seus pais, mas o tempo já os apagara há muito de sua memória, assim como o apagaria das de seus filhos.

Mulheres? Também não... Nem se lembrava da última vez que saíra com uma. Nos últimos meses sua vida sexual se resumia a vídeos no PornTube, que assistia escondido no quartel quando não estava policiando as ruas, e a alguns cines privês que eram exibidos tarde da noite em um canal da TV aberta. Essa também não era uma das lembranças mais prazerosas.

Convulsões, frio, suor. Não conseguia mais abrir os olhos. Rápido, uma última lembrança feliz. Percorreu sua memória recente. Hoje era dia 06 e ele estava morrendo. A filha-da-puta ia ficar sem o cheque da pensão. Sorriu.

4 comentários:

  1. Simplesmente AMEI! A riquesa dos detalhes regados de sagacidade me transportou até aquele cubiculo onde acontecia a cena toda. Tu és OTIMA nisso, amiga! Ha hras nao parava pra ler o blog pq tava sem internet. Vou olhar os antigos! Bjs

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  2. Me surpreendeu agora flor... Detalhes com "cotidiado" saliente... Muito bom...

    Scorpion - o Anjo Gótico...

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  3. Black Ninja (Explosivo)10 de outubro de 2011 às 05:24

    Final feliz! rs!

    Excelente texto, como sempre!

    Parabéns!

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  4. O máximo! Bem escrito, detalhado. Dá para se sentir dentro do "cubículo" assistindo a tudo. Você se superou !!!

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