quinta-feira, 5 de maio de 2011

Contos & Crônicas: Não pode chover para sempre


“Olhando para trás e vendo os últimos anos da minha vida percebo um padrão de coisas que se repetem. Conheci muita gente. De cada um extraí o máximo que pude. Hoje me vejo sozinha. Cometi muitos erros. Conquistei muitas coisas, no entanto percebo que nem tudo vale a pena. Mas, como diz a canção: ‘infelizmente nem tudo é exatamente como a gente quer”.

Parou de escrever. Sentada em sua poltrona perto à janela, Clarice via a chuva bater contra o vidro. Suspirou pesadamente.

- Até o mundo está chorando...

Fechou seu diário e contemplou a dança feroz da natureza. Embalada pelo som da tempestade, recordou tudo que havia vivido nos últimos 15 anos.

Chegara a capital muito nova, fugindo da pequena cidade onde nascera. Naquela época, tinha grandes planos para o futuro. Achou que, assim que estive-se na cidade grande, todas as portas iriam se abrir. Pobres sonhos de menina do interior...

Por ter apenas 14 anos e nenhum representante legal não arranjou emprego nem moradia. Passou quase uma semana nas ruas. Em uma noite de frio, enquanto dormia, dois garotos levaram seu único pertence: uma mochila velha com algumas mudas de roupa e um pouco de dinheiro que havia roubado da caixinha de joias da sua mãe antes de sair de casa. Apavorou-se quando acordou e não achou suas coisas. Caminhou a ermo pela rua. Chorava muito.

Foi nessa mesma noite que conheceu Vanessa. Vendo a menina, a mulher apiedou-se: já tinha passado situação semelhante. Sabia muito bem o que era não ter nenhuma esperança no futuro.

- Tá com fome?

Clarice assustou-se quando ouviu a voz da mulher que lhe estendia uma coca-cola e um sanduíche de queijo.

- Pega.

- Obrigada.

Clarice praticamente devorou tudo. Não comia nada há vários dias. Enquanto engolia a comida, reparou melhor na mulher a sua frente. Ela não era bonita, nem feia. Morena, com cabelos encaracolados até metade das costas. Seu vestido era um tomara-que-caia justo e curto de cor vermelha. Estava com uma pequena bolsa dourada transpassada. Usava salto alto e maquiagem carregada. Embora não fosse muito mais velha que ela - tinha apenas 18 anos - percebia-se em seu rosto a marca da experiência que só a vida nas ruas pode dar.

- Qual seu nome?

- Clarice.

- O meu é Vanessa. – Sorriu-lhe.

Foi naquela noite que sua vida mudou. Clarice contou a Vanessa sua história. A morena se identificou com a menina. Sabendo que ela não tinha lugar para ficar, convidou-a para passar alguns dias em seu pequeno apartamento de um quarto.

Os dias transformaram-se em semanas e as semanas em meses e Clarice não conseguia um emprego. Resolveu então pedir ajuda à amiga. Vanessa lhe ensinou sua profissão. Foi assim que Clarice tornou-se garota de programa.

Mudaram-se para um apartamento um pouco maior, de dois quartos. Agora, dividiam o aluguel. O contrato havia sido assinado mediante adiantamento de dois meses, pago com o dinheiro do primeiro cliente de Clarice. O homem que havia tirado sua virgindade tinha sido muito generoso pelo simples prazer de ser o primeiro na vida da garota.

Foi assim que Clarice aprendeu a se sustentar com seu corpo. Dos 15 aos 22 tinha ido p/ cama com todo tipo de gente: homens, mulheres, garotos inexperientes e respeitáveis senhores bem casados pais de família.

Foi mais ou menos nessa época que Vanessa começou a cheirar cocaína. As duas discutiam muito sobre isso. Clarice não aceitava drogas. Sempre que elas brigavam, a mais velha saía de casa irritada, até o dia que não voltou mais. Pouco tempo depois, a garota ouviu a notícia que corria pelas ruas: Vanessa morrera de overdose. Sem documentos, foi enterrada como indigente.

Clarice ficou triste, mas não chorou. Tinha aprendido a ser dura. Sem a amiga, teve que duplicar o número de programas p/ pagar o aluguel e o curso supletivo de 2º grau. Foi quando, em mais uma noite inesperada, sua sorte mudou novamente.

Estava parada em seu costumeiro ponto de trabalho quando um carro preto encostou e baixou o vidro. De dentro, um homem calvo, que aparentava ter 50 anos. Absorveu cada detalhe de Clarice: seus cabelos castanhos lisos caídos nos ombros, seus olhos cor de mel, rosto perfeito, boca carnuda, seios fartos, quadris largos e curvas impecáveis.

- Quanto é o programa?

- R$ 30 a hora.

- Te dou R$ 1.000 se passar a noite inteira comigo.

Ela mal pôde acreditar no que ouviu, mas aceitou a proposta. O homem era um deputado e fez de Clarice sua nova favorita.

Em pouco tempo ela já estava morando em um apartamento melhor e, mesmo depois que o político sumiu, não passou mais por apertos. Agora sabia exatamente onde encontrar os peixes grandes. Não fazia mais ponto na rua, recebia telefonemas discretos e atendia seus clientes em casa.

Com o dinheiro, que agora entrava farto e rápido, iniciou a faculdade de Administração. Ninguém sabia de sua vida dupla e lá ela se sentia quase normal: fez amigos, arrumou um namorado, tornou-se popular. Tudo parecia perfeito. Até o dia em que um colega de turma achou um vídeo dela com um dos clientes na internet. Foi sua maldição.

Não sabia que tinha sido filmada, mas, mesmo assim, pagou por seus pecados: sem namorado, sem amigos. Era alvo de piadinhas e fofocas. Tornou-se ainda mais dura diante da situação, afinal, precisava aguentar os dois anos que ainda faltavam para se formar. Começou a se envolver com professores, sobretudo os casados. Depois, cobrou de cada um seu silêncio. Muitos alunos exemplares não se formaram por causa dela.

Com o diploma de administração na mão, resolveu procurar um emprego. Só conseguiu vagas que pagavam pouco e Clarice já havia se acostumado à vida boa. Não pensou duas vezes: escolheu uma das melhores empresas da cidade e candidatou-se a secretária. Em apenas três anos, depois de derrubar muita gente de seus cargos e ir p/ cama com vários homens influentes, tornou-se membro da diretoria. Na conta, R$ 30 mil por mês. Na garagem, um carro importado.

Remexeu-se em sua poltrona junto à janela. Acendeu um cigarro e deu uma longa tragada. Pegou novamente seu diário e releu. Que idiota que ela havia sido... Saiu do interior com a promessa de vencer e foi o que fez!

Sentada em seu apartamento duplex no centro da cidade sorriu e rasgou a página recém-escrita. Não tinha mais do que reclamar. Fez tudo em sua vida para crescer e chegou ao topo. Não se arrependia de nada. Tragou novamente o cigarro. Ao final de tudo, a vida era boa. Muito boa.


Lá fora, a chuva ainda caía...





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