sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Os mano e as mina

É só impressão minha, ou está cada vez mais difícil ouvir plurais ortodoxos? Aqueles de antigamente, arrematados com um ''s'' - plurais tradicionais, quatrocentões? Os plurais agora estão cada vez mais enrustidos, dissimulados, problemáticos. Cada vez menos plurais são assumidos. Os plurais agora precisam ser subentendidos.


Verdade seja dita: não somos os únicos no mundo a ter problemas com a maldita letra ''s'' no final das palavras. Os franceses, debaixo de toda aquela empáfia, há séculos desistiram de pronunciar o ''s'' dos plurais. No francês oral, o plural é indicado pelo artigo, e pronto. Ou seja: eles falam ''as mina'' e ''os mano'' desde que foram promovidos de gauleses a guardiães da cultura e da civilização.

Os italianos também não podem com a letra ''s'' no fim das palavras. Fazem seus plurais em ''i'' e em ''e'', dependendo do sexo, ops, do gênero das palavras. Quando a palavra é estrangeira, entretanto, eles simplesmente desistem de falar no plural: decretaram que termos forasteiros são invariáveis, e tudo bem. Una foto, due foto; una caipirinha, quattro caipirinha. Quattro caipirinha? Hic! Zuzo bem!

Os alemães, metódicos que só, reservam o ''s'' justamente a esses vocábulos estrangeiros que os italianos permitem que andem por aí sem plural. Com as palavras do seu próprio idioma, no entanto, os alemães são implacáveis. As palavras mais sortudas ganham apenas um ''e'' no final, mas as outras são flexionadas com requintes de tortura - com ''n'' (!) ou com ''r'' (!!), às vezes em conjunto com um trema (!!!) numa vogal da penúltima sílaba (!!!!), só para infernizar a vida dos alunos do Instituto Goethe ao redor do planeta.

Práticos são os indonésios, que formam o plural simplesmente duplicando o singular: gado-gado, padang-padang, ylang-ylang. Pelo menos foi isso que eu li uma vez. (Claro que não chequei a informação. Eu detestaria descobrir que isso não é verdade.) Já pensou se a moda pega aqui, feito aquele pavoroso cigarro de cravo? Os mano-mano. As mina-mina. Um chopps e dois pastel-pastel.



Nem mesmo nossos primos de fala espanhola escapam da síndrome dos comedores de plural. Os andaluzes e praticamente todos os latino-americanos também não são muito chegados a um ''s'' final. Em vez do ''s'' ríspido e perigosamente carregado de saliva dos madrilenhos (que chiam quase tanto quanto os portugueses), eles transformaram o plural num acontecimento sutil, perceptível apenas por ouvidos treinados. Em Sevilha, Buenos Aires ou em Santo Domingo, o ''s'' vira um ''h'' aspirado – lah cosah, lah personah, loh pluraleh.

Entre nós, contudo, a mutilação do plural não tem nada a ver com sotaques ou incapacidade de pronunciar fonemas. Aqui em São Paulo, a falta de ''s'' é um fenômeno sociocultural. Os pobres não falam no plural por falta de cultura. Da classe média para cima, deixamos o plural de lado quando há excesso de intimidade. É como se o plural fosse algo opcional, como escolher entre ''você'' e ''o senhor''. Se a situação exige, você vai lá e aperta a tecla PLURAL. Se a conversa for entre amigos, basta desligar, e os esses desaparecem em algum ponto entre o cérebro e a boca.

O que se deve fazer? Uma grande campanha educativa, com celebridades declarando que é chique falar os plurais? Lançar pagodes e canções sertanejas falando da dor-de-cotovelo causada por não usar ''s'' no final das palavras? Ou contratar um grupo de artistas alternativos para sair pichando nos muros por aí uma mensagem subversiva? Tipo assim: OS MANOS E AS MINAS.

(Ricardo Freire -  Cadê os plural?)




O Brasil segue o mesmo rumo dos países citados por Ricardo Freire. A "despluralização" é hoje um fenômeno que nenhuma regra consegue impedir. E não adianta afirmar que é um fator sócio-cultural das camadas mais baixais que não tiveram oportunidade, afinal, quem nunca ouviu corriqueiramente qualquer pessoa de seu meio falar "É 10 Real"?

A norma culta nos ensina que é errado. E que a linguagem coloquial pode até ser discordante de número e gênero, mas a formal e a escrita, não. Mas então surge uma nova tendência: o preconceito linguístico e seus combatentes. Em muitos casos, afirmam que não devemos corrigir os "deslizes" (ou erros, para quem preferir) da linguagem coloquial. E assim, o próprio MEC resolve adotar um livro que ensina que “os menino pega o peixe” não é errado.




Foi a primeira grande discussão do tema no país. E então? Falar errado pode ou não pode? Bom... decidiu-se que poder, pode. Mas ensinar assim em escolas, jamais. O mesmo para a linguagem culta e escrita. Mas também não é de consenso geral. Olha o preconceito! E agora? Agora vemos uma acalorada guerra que ainda vai levar muitos anos e, provavelmente, não trará vencedores. Pelo menos não no âmbito formal.


Mas dessa discussão surgiu uma questão interessante: a inversão de valores. Ou melhor, a inversão de preconceitos. Uma colega minha da pós disse: "muitos sabem exatamente qual é a concordância correta em determinada situação, mas preferem não utilizá-la para não serem “diferentes” ou não parecerem “ridículos” dentro do contexto". 


Concordo, Denise. Há um preconceito linguístico aí que parte da linguagem coloquial e avança para a formal. Mas desse, quase ninguém trata. Sim, é preciso haver uma adequação entre o falar e o escrever e, acima de tudo, deve haver respeito entre os interlocutores, porque criticar "as mina" é preconceito, mas falar "as meninas" é chato e ultrapassado.



A "despluralização" existe e é um processo praticamente impossível de ser freado. Não é uma questão de fala simplesmente. Vai além: é a cultura de cada parte do país, das diferenças de classes e de muitos outros fatores. Em breve, quem sabe, nossos plurais serão formados apenas flexionando os artigos e "os mano" será considerado certo na norma culta. Mas ainda não é o caso. Há sim que se respeitar as diferenças, mas também há que se cobrar na formalidade, na escrita, o emprego correto de nossa língua.

Enquanto isso, a população nas ruas continua falando "os polícia" e escrevendo - sobretudo na internet - ainda pior. Pode ser que a regra nunca mude, mas quem sabe em um futuro não tão distante, as nossas crianças não saibam mais diferenciar o "certo" do "errado".







3 comentários:

  1. Sim, é triste ver como quase ninguém mais respeita o português correto, e os que respeitam, são criticados e/ou chamados de "estranhos".

    Tudo bem falar errado com os amigos, já que há pessoas que "cansam" de falar correto o dia inteiro, todavia, quanto mais as pessoas aderirem a esse hábito, mas o português estará sumindo.

    Todos devem ter o discernimentos entre falar e escrever, não é a mesma coisa, como muitos pensam. Falar errado, até que vai, mas escrever errado, não colocando os plurais,daí já é atentado contra a nossa língua.

    Mas com o passar do tempo, quem sabe a humanidade não retoma a consciência?

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  2. Sensacional minha querida.
    Você é excepcional.

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